A mulher diz que veio do Recife-PE e não teve outra opção na vida. O jovem prefere não depender da ajuda dos familiares. O outro é ex-detento e afirma ter pai e mãe, mas não quer ser motivo de problemas. Prefere não mostrar o rosto. Os personagens são diferentes, mas têm histórias parecidas e dividem […]
A mulher diz que veio do Recife-PE e não teve outra opção na vida. O jovem prefere não depender da ajuda dos familiares. O outro é ex-detento e afirma ter pai e mãe, mas não quer ser motivo de problemas. Prefere não mostrar o rosto. Os personagens são diferentes, mas têm histórias parecidas e dividem a mesma condição de vulnerabilidade social. São moradores de rua que ocupam canteiros, ruas e avenidas da capital. Temporariamente ou por tempo indeterminado, a presença destes incomoda alguns e representa um desafio para a administração pública.
A avenida Monsenhor Walfredo Gurgel, próximo a avenida do Contorno, é o local de moradia da desempregada Jéssica Valdenice, 30 anos. A via está interditada para obras no viaduto do Baldo. Sem o tráfego de veículos, o local torna-se um espaço tranquilo. Mas a tranquilidade aparente esconde perigos que somente os moradores de rua conhecem. “A rua é um pouco perigoso. Às vezes aparece alguém querendo mexer com a gente”, disse Jéssica.
O barraco da pernambucana de Recife é feito de lona, cordas e pedaços de madeira. Debaixo da estrutura, um colchão velho e uns pedaços de tecido. Fora da “casa”, alguns objetos, lixo e uma cadela completam o cenário. “O nome dela é Aurora. Encontrei ela no lixo. Jogaram fora, mas eu fiquei. Tá limpa e bem gordinha”, informou.
Passava das 7h, na última sexta-feira, quando a reportagem chegou ao local. A princípio, Jéssica não quis conversar. Porém, com um pouco de insistência, resolveu contar sua história. Perto dali, debaixo do viaduto, uma estrutura maior chama atenção.
A carcaça de um carro incendiado transformou-se na casa para dois homens e uma mulher. Assim como Jéssica, o jovem Inácio da Silva, 37 anos, não quer conversar. “A gente sofre na rua. Prefiro nem falar com vocês e não quero que tirem minha foto”, afirma.
O amigo de Inácio, de iniciais F.P.M., 37 anos, é quem intermedeia a conversa. O jovem não quer revelar o nome porque é ex-detento e tem medo “de que os caras venham atrás de mim”. Na rua, ele está há dois meses, depois de cumprir, segundo ele, 16 anos de prisão. As tatuagens verdes no corpo são marcas de um passado envolvido com o crime. “Fui preso porque roubei carro. Fiz as tatuagens na cadeia. Mas aqui na rua está bom demais. Tenho pai e mãe, mas não quero morar com eles para evitar problemas”, coloca.
Mais à frente, ao lado do Solar Bela Vista, cerca de 50 pessoas esperam o relógio marcar 8h. É a hora do café da manhã na Fundação Ana Lima, responsável pelo “Projeto Ilhas”. Por uma porta de ferro, pão e iogurte são servidos àqueles que esperam do lado de fora. “Não moro na rua, mas muita gente que mora vem pegar esse lanche. Não tem gente ruim aqui, é só gente boa”, diz Arthur da Silva, 23 anos.
As cenas descritas acima, de certa forma, já fazem parte do cenário urbano da cidade. Esquecidos pelo poder público e marginalizados pela sociedade, esses moradores de rua permanecem onde estão e não encontram alternativas de vida. Mas é na avenida das Alagoas, no bairro de Neópolis, onde encontramos outro tipo de moradores que aproveitam os festejos natalinos para promover uma “invasão” nos canteiros.
Esse ano, desde a última terça-feira, pelo menos, 20 famílias dividem o espaço entre as vias movimentadas da avenida. São idosos, jovens e crianças oriundos de bairros periféricos como Felipe Camarão, Guarapes e Leningrado que pretendem ficar no local até o início do próximo ano. “Todo ano a gente vem receber os presentes que as pessoas nos dão”, disse a dona de casa Marluze Ferreira, 53 anos. “O pessoal ajuda mesmo. Recebemos várias coisas: comida, roupa e brinquedo”, enfatizou a também dona de casa Maria da Conceição, 46 anos.
Elas chegaram na última terça-feira e só vão embora depois das festas de fim de ano. A presença das famílias transforma a paisagem urbana. O canteiro lembra uma favela, com barracas feitas de lona, papelão, pedaços de madeira e fogões de carvão ou lenha. De acordo com a assessoria de imprensa da secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (Semtas), há um trabalho junto aos moradores de rua da cidade, porém, com os pedintes que ocupam os canteiros durante as últimas semanas do ano, não há o que fazer. “Nós temos o albergue na Ribeira e temos cadastro dos moradores de rua, mas com esse pessoal que vem ocupar os canteiros, não há muito que fazer. A maioria, inclusive, não é munícipe de Natal”, diz a assessoria.
Relatório aponta 1,2 mil pessoas em situação de rua
O curso de Serviço Social da UNIFACEX apresentou, em agosto passado, o relatório final da pesquisa “Moradores de rua em Natal: quem são e como vivem?”. O estudo, coordenado pelas professoras Iza Cristina Leal Bezerra e Maria Alaíde de Oliveira, traça um perfil detalhado – por amostragem – das pessoas que vivem pelas ruas da capital potiguar. Os dados foram coletados entre março de 2011 e março deste ano, por estudantes e educadores dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social Para População em Situação de Rua (CREAs-Pop), programa do Governo Ffederal mantido pelo Município.
Segundo estatísticas da própria Semtas, em 2009 foram identificadas cerca de 1,2 mil pessoas em situação de rua [veja box]. Não há dados atualizados. O relatório da pesquisa tem como objetivo contribuir com o planejamento e execução de projetos e ações da Secretaria.
A professora Iza Leal aponta alguns destaques das informações tabuladas, como o fato 70% das pessoas serem de Natal e 82% do sexo masculino. “Há famílias inteiras morando na rua, principalmente no centro da cidade e na zona Norte. O restante são grupos isolados”. Em comum, de acordo com a professora, está a perda do vínculo familiar, perda do trabalho e dívidas. “O interessante é perceber que muitas pessoas, apesar de estar na rua não se consideram moradores de rua”. Para Iza, uma das explicações para nortear o entendimento dessa visão é o orgulho machista: “Como a grande maioria é homem, eles dizem que estão naquela situação por opção, por vontade própria”.
Outro detalhe importante identificado pelo estudo é o fato de boa parte dos moradores de rua acreditarem que estão bem assim. “Eles acreditam que a rua pode dar tudo que eles precisam”, analisa a professora, que chama atenção para a prática negativa do assistencialismo sem propósitos, como a esmola e/ou a distribuição de sopa. “Dentro do campo do Serviço Social somos contra essas iniciativas, pois servem apenas para amenizar problemas a curto prazo e não resolvem nada. Ao contrário a médio e longo prazos prejudicam ações estruturantes por causar comodismo”, avalia.
Para potencializar os resultados práticos dos programas desenvolvidos pela Prefeitura, a professora Iza Leal defende a relocação do albergue público – que funciona há pouco mais de dois meses na rua das Virgens, Ribeira. “O albergue deveria ser mais central para facilitar o acesso das pessoas que circulam a pé pela cidade; e precisa estar mais próximo aos CREAs-Pop para conferir maior integração das atividades. Também é preciso criar mais parcerias e vínculos institucionais para oferecer oportunidade de qualificação e formação profissional”, acredita.
Iza ressalta a dificuldade das pessoas em situação de rua em conseguir amparo no sistema público de saúde e cadastro em programas sociais por falta de um endereço fixo. “É preciso reavaliar os procedimentos para incluir essas pessoas nos serviços públicos”.
Fonte: Tribuna do Norte